Nos últimos anos, a historiografia nacional foi farta em trabalhos sobre os efeitos da pandemia de gripe espanhola de 1918 nas principais cidades brasileiras.
1 Vários autores debruçaram-se sobre diversos aspectos do evento, analisando as modificações cotidianas geradas pelo contexto epidêmico, as práticas dos profissionais do campo médico em relação à epidemia, a atuação dos serviços de saúde pública e, até mesmo, o conjunto de sentimentos da população no conturbado contexto que se apresentava. A americana Gina Kolata mostra que nos Estados Unidos foi diferente, explicando que em sua terra a literatura sobre o tema quase que se resume ao livro America's forgotten pandemic, de Alfred W. Crosby, e que essa escassez de literatura sobre o tema incentivou-a a escrever. Gina Kolata é jornalista científica, formada em microbiologia, e estudiosa de biologia molecular. Já escreveu vários textos sobre temas científicos, destacando-se o livro Clone: os caminhos para Dolly e as implicações éticas, espirituais e científicas (Rio de Janeiro, Campus, 1998), fruto de seu sistemático acompanhamento, para o New York Times, da trajetória que culminou com o nascimento da ovelha Dolly. Seu livro, Gripe, a história da pandemia de 1918, caracteriza-se como um abrangente relato dos esforços da ciência em busca de compreender as causas da doença e evitar o seu possível retorno. Na verdade, o título original da obra, Flu: the history of the great influenza pandemic of 1918 and the search for the vírus that caused it, revela muito mais do que a tradução nacional que, ao suprimir toda a parte do subtítulo, dá a entender tratar-se de um relato centrado nos eventos de 1918. Segundo a própria autora, trata-se de uma história de mistério envolvendo ciência, política, pesquisadores e um vírus assassino. História de acasos e surpresas que merecia ser contada, tanto pelo drama da narrativa, como por suas implicações, pois a solução do mistério poderia ajudar os cientistas a evitar uma possível volta do microscópico vilão.
Seu estudo inicia-se com uma resenha histórica sobre a pandemia, centrando-se na sua passagem pelos Estados Unidos, onde adentrou em Boston, no mês de setembro de 1918, espalhando-se pelos mais longínquos recantos do país. Vinte e cinco vezes mais letal do que a gripe comum — gripes comuns matam um em cada mil acometidos, a influenza tinha um índice de mortalidade de 2,5% —, a epidemia deixou um rastro de meio milhão de mortos, determinando a queda de 12 anos na expectativa de vida dos americanos. Seu surgimento no contexto dos enfrentamentos que levaram ao final da Primeira Guerra Mundial ampliou a apreensão geral, para a qual também contribuiu a inexistência de conhecimentos científicos capazes de deter ou evitar o mal, pois, embora a teoria microbiana das doenças já tivesse dado largos passos, o conhecimento sobre os vírus se resumia à possibilidade de sua filtrabilidade em meios físicos, não havendo maior compreensão sobre sua forma de atuação no organismo humano.
De forma semelhante às pesquisas relacionadas à história das doenças, Kolata apresenta a pandemia através de uma comparação com várias outras epidemias que desde tempos imemoriais devastaram diversas sociedades. Nesse aspecto, é salientado que, a partir do início do século XX, o desenvolvimento da medicina criava a expectativa de total controle das principais doenças epidêmicas. Retomando as idéias de Phillipe Ariès expressas em suas obras sobre a história da morte no Ocidente, a autora afirma que foi uma época em que a morte quase perdera o seu poder, se separando da vida cotidiana pela força dos milagres da medicina, que passou a ser cultuada por muitos como uma nova religião. Mas o surgimento da gripe, no fim da década de 1910, daria fim a essa situação. Também de forma análoga a diversos outros trabalhos, a passagem da pandemia pelos Estados Unidos é apresentada por meio do relato de suas violentas conseqüências: os horrendos sintomas, as terríveis formas de morte, a loucura coletiva que se apossava das cidades, a imputação de culpa a terceiros e vários outros aspectos conhecidos dos que se detiveram nos vários relatos sobre epidemias que se multiplicaram desde a publicação do Diário do ano da peste por Daniel Defoe, em 1665.
A possibilidade de desenvolvimento de uma vacina contra a doença, aliada à noção do possível retorno do vírus e de suas funestas conseqüências, são os fios condutores da obra de Kolata. A seu ver, até o presente momento não se sabe como produzir um remédio que seja o equivalente da penicilina para o processo gripal, no entanto, os conhecimentos no campo da virologia já são suficientes para possibilitar a elaboração de vacinas virais eficazes. Precisamente, em relação à gripe, há algum tempo os cientistas aprenderam a reconhecer seu vírus por meio do microscópio eletrônico; também já descobriram que ele é composto por apenas oito genes, cada um feito de RNA (ácido ribonucleico encontrado no núcleo da célula), e que não conseguem permanecer ativos se não puderem infectar nenhuma célula em questão de horas. Os especialistas também sabem como esses vírus se ligam uns aos outros através de uma membrana lipídica viscosa e como eles se alojam nas células. Sabem até que o vírus da gripe contamina principalmente os pulmões, porque lá estão as células compostas por uma enzima que ele necessita para romper uma de suas proteínas durante a elaboração de novas partículas virais. Tal manancial de conhecimentos está prestes a lhes permitir elaborar uma vacina que proteja grande parte da humanidade em caso de uma nova pandemia. Para tanto somente uma coisa é necessária: saber com que o vírus da gripe de 1918 se assemelhava.
É exatamente esse processo de conhecimento do vírus pelos cientistas que ocupa a maior parte da obra. Ele centra-se nos esforços de equipes distintas em encontrar o vírus em tecidos pulmonares de mortos pela epidemia através de técnicas diferenciadas. Um grupo fez uso de fragmentos de pulmões, de um soldado do exército, guardados no depósito de tecidos do Instituto de Patologia das Forças Armadas — instituição criada pelo próprio presidente Lincoln, para a guarda de tecidos de portadores de tumores ou outras doenças pouco conhecidas, examinados por médicos militares. Outras equipes saíram em busca de vilarejos isolados no Alasca e na Noruega, onde vítimas da doença foram enterradas em solo permanentemente congelado, o que permitia aos cientistas imaginar a possibilidade de reencontrar o vírus ainda preservado nos congelados tecidos de seus pulmões.
A primeira parte dessa epopéia foi a expedição do patologista sueco Johan V. Hultin ao Alasca, em 1951, objetivando encontrar corpos de habitantes mortos pela gripe, enterrados em locais permanentemente congelados, e deles extrair tecidos com vírus possíveis de serem ativados em cobaias. A expedição é narrada de forma instigante, principalmente pela precariedade de meios para executar sua empresa. Mas, a despeito de seu entusiasmo, ela não alcançou os objetivos esperados, pois ao retornar a seu laboratório, com os tecidos possivelmente infectados, com o vírus, Hultin não conseguiu reativá-los, nem pela injeção de fragmentos dos tecidos em ovos, nem por sua aplicação em animais de laboratório.
O desenvolvimento de novas técnicas de biologia molecular possibilitaria novas incursões em busca do vilão de 1918. A segunda delas ocorreu entre 1995 e 1997, e não implicou nenhuma viagem, e sim a utilização de tecidos guardados no Instituto de Patologia das Forças Armadas. O responsável pela empreitada foi Jeffrey Taubenberger, chefe de laboratório no referido instituto. A história começa quando ele se depara com um artigo, publicado na Science, que investigava a determinação genética do daltonismo do mitológico químico John Dalton — primeiro a propor a teoria atômica da matéria, ainda no século XVIII. Para isso eram utilizadas técnicas de engenharia genética, aplicadas aos tecidos de seus globos oculares, até hoje preservados. O artigo deixava no ar as diversas possibilidades abertas pela técnica do PCR — reação em cadeia da polimerase — e Taubenberger, rapidamente, viu a possibilidade de utilizá-las em uma pesquisa que lhe desse notoriedade. Depois de matutar por algum tempo, ele concluiu que deveria se voltar para a gripe epidêmica de 1918, e que o melhor caminho seria utilizar o banco de tecidos da instituição em que trabalhava para, a partir de pedaços de vírus encontrados em pulmões de mortos pela doença, procurar reconstruir o código genético do causador da epidemia.
Com a ajuda de Ann Reid, auxiliar muito experiente nas técnica da biologia molecular, Taubenberger começou a trabalhar com o tecido de um soldado falecido, encontrado no depósito do Instituto de Patologia em março de 1995. A primeira parte do trabalho consistia em separar os genes das células pulmonares, deixando-os prontos para a análise. Depois foram usadas as complicadas técnicas do PCR, com o objetivo de obter um material denominado gene matriz — pedaço do vírus que sofre poucas mutações com o tempo — para, a partir dele, fazer inúmeras cópias do fragmento de gene. A técnica fazia uso de outros genes matriz de gripe que serviriam como anzóis para capturar os genes específicos da gripe de 1918 contidos nos tecidos em estudo. Mas a experiência falhou pois nenhum pedaço do vírus foi encontrado. Depois de um ano sem obter sucesso, eles mudaram a rota de seus experimentos, tentando refazê-los a partir de amostras de tecidos de mortos em epidemias de gripe mais recentes. Obtiveram sucesso com vítimas da gripe de 1957, o que demonstrava a exeqüibilidade de seu método. Logo voltaram a se debruçar sobre a gripe de 1918 e finalmente conseguiram evidências da existência do gene da gripe de 1918 nos tecidos em que trabalhavam. Não conseguiram a seqüência completa de genes do vírus, mas obtiveram genes virais, o que possibilitava um conhecimento muito mais detalhado do vírus.
Nesse ponto da narrativa, salta aos olhos alguns aspectos da organização social da ciência. Um deles diz respeito à grande hierarquização desta atividade profissional. No processo observado anteriormente, a técnica Ann Reid teve atuação destacada porque, mais que seu coordenador J. Taubenberger, era ela quem conhecia as sofisticadas técnicas de PCR, fundamentais para a obtenção das pistas dos genes. No entanto, a autora mostra que ela não tinha reconhecimento profissional de seus pares por não ter título de doutora. Outro aspecto interessante é o fato de o artigo sobre a pesquisa ter sido primeiramente recusado pela Nature, sem mesmo ter tido parecer, com a justificativa de não ser suficientemente interessante para ser analisado. Enviado à Science, teria o mesmo destino. Somente algum tempo mais tarde seria publicado por esta última, depois de um tour de force de seus autores que conseguiram o apoio de influentes virologistas em favor da publicação. Aproximando-se das interpretações sociológicas do campo científico, os protagonistas desse evento creditam o desinteresse pelo seu trabalho ao fato deles não fazerem parte da "comunidade da gripe", caracterizando-se como pesquisadores desconhecidos, distante da elite da pesquisa nesse campo.
A busca pelo vírus da gripe se daria ainda por outros caminhos, que acabariam juntando personagens até então distantes. Antes mesmo dos trabalhos de J. Taubenberger e Ann Reid chegarem às primeiras conclusões, Kirsty Duncan, geógrafa da Universidade de Toronto, que estudava como as mudanças climáticas afetavam a saúde humana, ficou fascinada pelo tema da gripe de 1918 e se deslocou até a Noruega em busca de uma região congelada que pudesse abrigar corpos de mortos pela doença, passíveis de extração do vírus. Em pouco tempo, ela conseguiu respaldo da comunidade local e autorização das autoridades para remexer as tumbas da região. Vendo a possibilidade de sua idéia se concretizar, Duncan entrou em contato com os maiores especialistas em gripe e montou um megaprojeto de busca do vírus, sob a liderança científica do virologista inglês Jonh Oxford. Em 1997, ao buscar financiamento para o projeto junto ao governo americano, ela acabaria por encontrar Taubenberger. Numa reunião para discutir as verbas para o projeto de Duncan, ele mostrou já ter avançado bastante em relação às conclusões de seu trabalho, publicado na Science, imaginando que seu método pudesse chegar aos resultados necessários sem a necessidade de uma nova e perigosa tentativa de procurar o vírus em cadáveres congelados. No entanto, a perspectiva de procurar o vírus da gripe pelo método de Taubenberger foi desprezada, e Duncan obteve uma verba de 150 mil dólares do governo americano para dar início a sua empreitada. Os fatos que se seguiram à colocação em prática do megaprojeto de Duncan são dignos de uma história de suspense, relacionando-se a outros personagens e métodos pouco éticos de obtenção de sucesso científico. Narrá-los tiraria o interesse na história, mas alguns pontos devem ser ressaltados. Um deles diz respeito ao pouco cuidado com os perigos inerentes ao objeto estudado. É de deixar perplexo como em nenhum momento é colocado na balança se a perspectiva de obtenção do vírus é válida frente à real possibilidade deste agente infeccioso contaminar alguém, trazendo de volta a doença que os cientistas, pelo menos na justificativa de seus projetos, pretendiam evitar. Embora alguns destes personagens, em certos momentos, procurem se precaver desta possibilidade, através da utilização das mais variadas tecnologias de biossegurança, todos sabem que é impossível controlar os diversos aspectos e fases do trabalho. Outro ponto relevante diz respeito à importância dada à precedência da possível descoberta. Para chegar primeiro ao vírus, os pesquisadores se engalfinham numa luta que, muitas vezes, coloca em risco seu próprio trabalho e a segurança da população. Certamente, neste caso, chegar primeiro vale muito, é fundamental para assegurar a publicação, para a obtenção de verbas, para aparecer na mídia, enfim, para a ascensão no campo científico.
Mas não só a busca do vírus no corpo de cadáveres está presente na obra. Para seguir os passos do vírus, Kolata volta-se para diversos e, algumas vezes, desconexos caminhos. Um deles diz respeito à possibilidade de a epidemia de gripe se relacionar à gripe dos porcos. Essa história começa com os estudos de Richard E. Shope sobre a gripe suína, realizados a partir de 1928. Atento à informação de que milhares de porcos do meio-oeste americano morreram de gripe suína, em 1918, e a referências à possibilidade de a gripe humana ser a mesma doença observada nos porcos, ele empreendeu estudos visando encontrar essa possível identidade. Primeiro, tentou replicar a doença, gotejando muco e secreções brônquicas de porcos doentes no nariz de porcos sadios, mas suas experiências, inicialmente, não obtiveram êxitos e geraram novas questões sobre a possibilidade da associação de uma bactéria ao vírus ser necessária para originar a doença. Sabendo que um pesquisador da Fundação Rockefeller havia conseguido infectar furões com a gripe humana e também com a suína, e que os ingleses Wilson Smith, Christopher Andrews e P. Laidlaw tinham transmitido a gripe de furões doentes a ratos-brancos, Shope retornou a suas pesquisas, juntamente com estes ingleses, logo detectando a imunidade cruzada entre a gripe humana e a suína em experimentos com furões. A partir de então, o objetivo deles passou a ser o de saber, através de testes de imunidade entre as espécies, se a gripe suína e a gripe epidêmica de 1918 eram a mesma doença. Seus estudos voltaram-se para os sobreviventes da gripe de 1918, que deveriam ter em seu sangue o antígeno para a gripe suína. Os resultados mostraram que, tanto em Londres como nos Estados Unidos, os sobreviventes da gripe de 1918 tinham anticorpos que impediam a ação da gripe suína. Depois de testes comprobatórios, foi aceito o fato de existir uma conexão entre a gripe suína e a epidemia de 1918. Logo as cabeças começaram a pensar numa direção: possivelmente, pessoas doentes, de alguma maneira, transmitiram gripe aos porcos, os vírus permaneceram em estado latente nos animais, e depois, por algum motivo, voltaram a atacar as pessoas de forma selvagem. Assim, a permanência desse vírus nos suínos parecia ser uma constante ameaça de retorno de uma epidemia nos moldes da de 1918.
Segundo a autora, a descoberta da similitude entre a gripe suína e a humana foi o fator que levou ao maior programa de imunização em massa num curto espaço de tempo, realizado até então. O fato é assim narrado. Em fevereiro de 1976, em Nova Jersey, um soldado morreu de gripe, em meio a um surto que atingira seu regimento no mês anterior. Os laboratórios militares constataram tratar-se de um caso de gripe suína, o que fez acender uma luz vermelha em relação a uma possível epidemia de gripe de grande letalidade, visto o vírus da gripe suína ter sido considerado o mesmo agente da epidemia de 1918. Novos testes comprovaram a origem da gripe e sua disseminação por mais alguns soldados do regimento. Uma semana após a morte do militar, os especialistas do Centro de Controle de Doenças de Atlanta, analisando os relatórios dos virologistas que acompanharam o caso, concluíram que existia um perigo real de uma nova pandemia de gripe, e que a saída para o problema era promover a vacinação em massa dos americanos. Essa atitude foi logo ratificada por eminentes virologistas, entre eles, Ewin Kilbourne, diretor do Departamento de Microbiologia da Faculdade de Medicina Monte Sinai, em Nova York, que acreditava que, por motivos de mutações do vírus, as epidemias de gripe aconteciam num intervalo médio de 11 anos. Como a última acontecera em 1968, ele imaginava que em 1976 o mundo estaria sujeito a uma nova pandemia.
Em meio a uma grande apreensão, a idéia da vacinação em massa foi ganhando corpo, a despeito das dúvidas que rondavam o assunto, principalmente o fato de a gripe ter atacado somente quatro soldados, e de não se ter como provar que ela era a mesma que causara a pandemia de 1918. Logo a imprensa levou a público o problema, através de inquietantes artigos e entrevistas no New York Times e na NBC. Os cientistas do governo passaram a considerar imprescindível a campanha de vacinação. A imunização contra a gripe já era usual nos Estados Unidos, onde, anualmente, as autoridades médicas indicavam os vírus a serem combatidos, mas essa prática era restrita a idosos e portadores de doenças crônicas. Uma campanha de vacinação em massa traria problemas logísticos e orçamentários. Além disso, havia outras saídas, como estocar vacina, para ser aplicada somente em caso de confirmação de uma epidemia. Apesar dos entraves, venceu a opção pela vacinação. Em pouco tempo, a discussão foi subindo na hierarquia do governo americano, chegando às altas esferas federais. Simultaneamente o temor frente à possibilidade de uma epidemia catastrófica foi se transformando na certeza de uma tragédia iminente. Em março de 1976, depois de algumas reuniões com os mais eminentes cientistas americanos, o presidente Gerald Ford, ladeado pelos eméritos cientistas Jonas Salk e Albert Sabin — heróis americanos pelos papéis que desempenharam na erradicação da poliomielite com uso de vacina — anunciou que o governo pretendia pôr em prática um programa de vacinação em massa contra a gripe. O programa custaria 135 milhões de dólares, sendo a vacina licenciada pelos laboratórios do governo e produzida pelas indústrias farmacêuticas privadas.
A colocação em prática da colossal campanha acabou por gerar resultados imprevistos. Em pouco tempo, começaram a surgir na imprensa críticas ao programa. Muitas dessas críticas se voltavam para o fato de as poucas evidências da possibilidade de surgimento de uma epidemia não bastarem para se implementar uma campanha tão vultosa. Outros se prendiam à possibilidade de a vacina gerar alguma reação adversa, o que provocou uma enorme pendenga entre as indústrias farmacêuticas envolvidas no projeto e o governo americano sobre quem ficaria responsável por eventuais indenizações. Somente depois de o Estado aceitar essa incumbência, a vacina começou a ser acondicionada em embalagens para posterior distribuição, mas dez dias depois de iniciada a vacinação, a imprensa já começava a anunciar mortes e outros efeitos danosos causados pela vacina. Essas críticas já eram esperadas, pois certamente num coeficiente tão grande de vacinados haveria pessoas com problemas preexistentes que associariam o surgimento de seus males à vacinação. No entanto, observou-se que a vacina parecia favorecer o desenvolvimento de um distúrbio nervoso conhecido como síndrome de Guillain-Baré. Embora a maioria dos acometidos por essa doença se recupere totalmente, uma média de 10% adquire algum tipo de paralisia permanente, e 5% morre de problemas respiratórios. Com a ampliação do número de casos, houve uma enxurrada de processos contra o governo, e mesmo passado o acontecimento, permaneceram entre os especialistas opiniões discordantes sobre a vacinação ter causado uma epidemia de síndrome de Guillain-Baré. Em 1976, quarenta milhões de americanos foram vacinados, destes, algumas centenas desenvolveram a síndrome de Guillain-Baré, mas até hoje não existe evidência mais forte de que se estava à mercê de devastadora epidemia de gripe.
O episódio é narrado de forma bastante interessante, por mostrar o jogo de interesses profissionais que se esconde por trás do processo. Assim, os cientistas são vistos sob uma ótica que enquadra seus interesses nos diversos setores disciplinares ou institucionais do campo científico em que se inserem. Bem ao estilo do conceito de campo científico elaborado pelo sociólogo Pierre Bourdieu, Gina Kolata afirma que a urgência de prosseguir com o o projeto de vacinação ia além do objetivo de proteger o país da doença, traduzindo-se como um desejo de mostrar a importância do campo da saúde pública "numa época em que ela era vista como menos glamourosa e menos interessante que o domínio da biologia molecular, que então surgia com toda a força" (p. 174). De forma semelhante, a autora arremata o capítulo concluindo: "Se perguntarmos à maioria dos médicos, eles dirão que a vacina contra a gripe suína causou uma epidemia de síndrome de Guillan-Barré. Se perguntarmos aos especialistas em gripe, responderão que vacinas contra a gripe em geral causam a doença ... . E se perguntarmos a qualquer especialista médico que se preocupe com os risco de surgir uma gripe letal, ouviremos que o fiasco da gripe suína o faz hesitar" (p. 220). Apesar da sofisticação de sua análise, ficam de fora da narrativa alguns aspectos que certamente fazem parte do jogo de interesses posto em marcha com o projeto de vacinação. O principal diz respeito aos possíveis ganhos da indústria farmacêutica e outros envolvidos no processo de vacinação. Além disso, uma visão mais ampla do contexto político em que a resolução federal de vacinar toda a população foi tomada facilitaria uma melhor compreensão do acontecimento.
A obra de Kolata volta-se, ainda, para várias outras questões que norteiam as pesquisas relacionadas ao vírus da gripe epidêmica na atualidade: qual a sua origem geográfica? Como ele pode se tornar tão letal? Que organismos podem ser seus portadores? Como se dá a sua disseminação? Ela mostra que o esclarecimento destas e de outras questões está a cargo de uma respeitada rede de virologistas, que atuam nas mais diversas regiões do globo. Seus discursos mostram que compartilham a idéia de que é possível que uma mutação viral traga à tona uma nova pandemia, nos moldes da de 1918, por isso é necessário estar à alerta frente à possibilidade de retorno do perverso vilão. Também deixam entrever que imaginam já possuir armas suficientes para enfrentar um possível aparecimento do mal, impedindo que ele tome dimensões incontroláveis pela vacinação em massa e pelo uso de medicamentos que impeçam o surgimento de infecções oportunistas nos organismos já debilitados. A narrativa de suas pesquisas e de seus promissores resultados deixa o leitor algo confiante em que os acontecimentos de 1918 fazem parte de um passado que não corre o risco de se repetir. No entanto, a possibilidade hoje existente de que ataques de bioterrorismo gerem surtos de varíola — mal exterminado da face da Terra pela ciência e também por suas técnicas passível de retornar — deixa no ar uma certa inquietude.
Luiz Antonio Teixeira
Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, teixeira@coc.fiocruz.br
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