Passados 76 anos da morte de Virgulino Ferreira da Silva - Lampião, tido como o rei do cangaço, ainda é possível notar aqui acolá, nuances e resquícios da velha peleja, agora no campo das ideias entre os que defendem as volantes e os que glorificam os cangaceiros.
Em que pese todos os esforços em se estudar com a devida isenção o fenômeno do cangaço, o dualismo ainda permanece vivo e exacerbado. Contudo, é preciso não perder o foco. Principalmente a real noção do papel sociológico, político e cultural do cangaço na construção da história recente do povo dos sertões.
É como se ainda houvesse, respingos de pólvora, lágrimas, suor e sangue nas reflexões que ora se seguem em torno deste verdadeiro drama humano ocorrido desde meados do século XIX nos grotões do Nordeste. O que com Lampião, durara por mais de duas décadas, até o assassinado do cangaceiro Corisco - o diabo loiro.
Uma mistura realmente estranha e explosiva carregada por si mesma de ufanismo, ressentimentos, romantismo e adoração. Além de uma dose excessiva de incompreensões, parcialidades e preconceitos. Ingredientes que não contribuem em quase nada para a formulação de um debate franco e qualificado em torno de um tema dos mais palpitantes e polêmicos da história do Brasil.
Não faço objeção pura e simples à chamada formação do mito, quer seja como paixão ou ódio em torno da figura controversa de Virgulino - o Lampião. Isso porque, o que de fato me interessa é o homem histórico em sua contextualização temporal. Tendo como pano de fundo, as suas relações de causa e feito com o ambiente político e social da época. Malgrado o mito do herói ou do bandido ainda a motivar, tanto paixões quanto ódios.
Mais tudo isso são aspectos inerentes à própria história da humanidade. Algo ainda muito presente no imaginário coletivo das populações. No fundo, diria que, o que mais me interessa realmente é estar atento e vigilante no sentido de nunca me permitir perder de vista a noção da verdade histórica por mais doída que ela seja. Não me deixar levar pelo achismo absoluto daqueles que de pesquisadores só têm o nome.
A ponto de puder perceber todo o artificialismo das construções enviesadas, no mais das vezes puramente literárias ou academicistas que no geral, são edificadas não pelos sertanejos, porém pela pena refrigerada dos alienígenas de plantão, distantes demais do palco do acontecimentos. Os descompromissados com a realidade dos fatos. E que não têm sequer a mínima noção do que venha ser um mandacaru espinhento, uma jurema braba e, tampouco, ainda hoje, a dura, sofrida e dramática realidade vivida pelas gentes dos sertões.
Tenho, por tudo isso, imensas dificuldades em acreditar no que dizem e escrevem os escritores de bancadas, como igualmente nos que mantêm seus espíritos ainda armados para a batalha. Como ainda, nos escribas laureados dos gabinetes sempre prontos para qualquer shownalismo midiático.
Em favor da história, diria que é imperioso apurar ainda mais nosso olhar, liberto de quaisquer amarras do passado buscando encontrar a verdade com imparcialidade e isenção. Uma tarefa não somente dos pesquisadores, mas de todos quantos se derem a tarefa de ler, refletir e escrever sobre esta temática.
Não foi diferente o aconteceu durante os debates da II Semana do Cangaço ocorrida estes dias na cidade histórica de Piranhas em Alagoas. Confesso que não gostei do "tom da viola' que de certa maneira ritmou a maioria das discussões plenárias. Quer seja, satanizando Lampíão e os cangaceiros. E de certo modo, endeusando nas entrelinhas as volantes, além de eximir o sistema, coiteiros e os coronéis da política e latifúndio que emolduraram com rastros de violência a saga do cangaço.
Houve até quem não gostasse, por exemplo, quando se disse que tanto volante quanto cangaceiros foram "farinhas do mesmo Saco" ou estavam no mesmo balaio. O que eu concordo acrescentando apenas, que os cangaceiros não eram pagos com recursos do Estado.
Houve quem afirmasse na bancada que os volantes eram vocacionados, tinham uma missão a cumprir, não agiam por vingança; sendo regidos por um código de ética, diferentemente dos cangaceiros. Há controversas. Porém em partes, também concordo, ou seja, com as devidas e necessária retificações.
Senão vejamos: Então, porque jagunços e cangaceiros às vezes se transformavam em volantes ou vice-versa? Quantas violências horríveis foram praticadas e postas na cota de Lampião em nome da lei? Havia alguma ética ou ausência de violência na decapitação das cabeças em Angico, bem como nas inomináveis barbaridades cometidas pelo sertão adentro?
E há até quem diga, que quando cortaram a cabeça de Maria Bonita, ela ainda estava viva. E o dinheiro, os pertences, tanto do bando de Lampião quanto de Corisco (anos depois), com quem ficaram? Onde estava a ética? Fora também massacrada? E os bravos e famosos nazarenos não agiam também por sentimentos de vingança?
Em Piranhas disseram também que o que aconteceu na grota de Angico em 1938 quando Lampião e seu bando foram praticamente exterminados não constituiu um massacre e sim, um combate. Difícil acreditar na tese do combate quando se sabe que do lado das volantes apenas o soldado Adrião foi morto e ainda por cima, com fortes suspeitas de ter sido fogo amigo.
Ora é mister que se diga, que nem nos confrontos que se sucederam ao malogro de Mossoró em 1927 quando Lampião estava em franca desvantagem ante as tropas de três estados no seu encalço; como o da Serra da Macambira nas proximidades de Limoeiro do Norte, do sítio Ribeiro e no cerca da Ipueiras em Aurora ambos no Ceará. Lampião não fora pego assim tão fácil com se deu em 38.
De modo que, se em Angico o que houve foi um combate. O que dizer em relação ao que fizeram as volantes estaduais também 27 na fazenda Guaribas de Chico Chicote? Massacre, como se diz, 'é café pequeno', o que houve foi uma barbárie. Um crime hediondo e inenarrável.
Como se percebe, assim como nas guerras, também no cangaço a verdade foi uma das suas principais vítimas. Dizer portanto, que cangaceiros e volantes se igualaram nas atrocidades que cometeram contra o povo sertanejo, está de bom tamanho.
Por fim, penso que todos os que vivenciaram e conseguiram a duras penas sobreviver ao flagelo do cangaço foram igualmente vítimas em potenciais. Qualquer outra explicação que queira destoar muito deste fato, creio que não passa de uma tentativa em vão de se querer "vender gato por lebre".
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José Cícero
Pesquisador e conselheiro do Cariri Cangaço
Aurora - CE.
fotos CC
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