domingo, 12 de julho de 2009

Lampião: O verso e o reverso de uma mesma moeda

Por José Cícero


Agora, prestes a realização do "Seminário Cariri Cangaço" previsto para acontecer em setembro, o 'Blog de Aurora' assim como o do 'José Cícero' homenageiam a passagem dos 71 anos de morte do rei do Cangaço com a publicação de uma série de reportagens( iniciadas com o artigo:(Aurora e Lampião) abordando o fenômeno do Cangaço e seu expoente maior, especialmente sua passagem por terras de Aurora e região.
A trajetória do imortal Virgulino Ferreira da Silva – o Lampião rei do cangaço, desde o principio foi carregada de controvérsias. Mesmo quando ainda era ele um mero cidadão pacato, um agricultor e depois, tropeiro-viajante, mascate, almocreve, vendedor de bugigangas, ou seja, um ilustre desconhecido disposto a ganhar a vida com o suor do seu rosto palmilhando os caminhos das pedras a se estenderem pelos grotões do Nordeste adentro. Deste modo incansável, conheceu como ninguém, todas as lonjuras dos mais inóspitos rincões sertanejos. Logo depois, um triste episódio familiar, o assassinato (do pai), como tantos outros, sublinhados pela injustiça e pela impunidade marcou para sempre sua vida. A partir deste fato, nunca mais seria o mesmo. Sua lida de tropeiro viajante terminaria ali. O tangedor de tropas de burros se transformaria de repente numa figura altiva, temida, admirada, odiada.. Uma lenda a encher de fantasias e cruas verdades quase todo o cotidiano do povo esquecido dos sertões espalhados por mais de 7 estados percorridos pelo bando lampiônico por quase duas décadas. A solidão das estradas empoeiradas e agourentas da caatinga ganhara um personagem, cuja existência enchia de medo e curiosidades pobres e ricos, políticos e comerciantes. Logo a figura, daria lugar ao mito. A miséria e o sofrimento imposto secularmente aos sertões pela primeira vez na história(depois de Canudos) começavam a despertar a atenção do litoral. Uma dor de cabeça para os que se sentiam comodamente tranqüilos na 'corte do poder'. Para todos eles, agora o cangaço era uma aberração inaceitável. Uma afronta permanente à ética e a lei do faz-de-conta. A paz, assim como o silêncio dos cemitérios agora estava quebrado pelos malfeitores do oco do mundo. O sertão começava a ser visto e ouvido pelo cangaço de Lampião e seus comandados.
Lampião rapidamente se transformaria num vulto difundido pelos sertões mesmo numa época em que a leitura, o rádio e o jornal eram novidades inacreditáveis para poucos(quase ninguém daquelas bibocas). Mesmo assim, a história lampiônica foi se popularizando pela forte oralidade popular. Seus feitos sejam eles de bondade ou atrocidades se espraiaram pelo Nordeste e pelo país de uma ponta a outra. Estava assim iniciada a construção da saga de um herói para uns e bandido para outros. Um sujeito construtor da sua própria história como poucos no Brasil...
Hoje Lampião é uma das figuras mais pesquisadas da nossa história, com mais de 100 obras escritas sobre sua pessoa e seu bando, além de filmes e músicas nos mais das vezes regionalistas. A literatura popular também contribuiu e muito para esta difusão da história de Lampião e seu bando. Uma infinidade de cordéis também encheram as tipografias da região por vários anos. E a fama do rei do cangaço não teve mais fronteiras, de modo que é estudada em diversos países do mundo. Desde os anos 70 a figura de Lampião ajudou a projetar obras literárias, tais como de Ralf Dela Cava, Billy Jaynes Chandler, Rui Facó e tantos outros pesquisadores dentro e fora do país.
É certo dizer, entretanto, que todo mito é envolvido por uma verdadeira áurea de contradições, invenções e exageros, na sua maioria por fanatismo, ojeriza, paixão e preconceitos. Mas nada nos impede de olharmos a história do cangaço e a de Lampião e seu bando com a devida imparcialidade, sem nenhum ranço de paixão ou condenação preconcebida. A história como um corolário de acontecimentos cronológicos, sempre será um fenômeno não livre de contradições e distorções que no geral descambam inevitavelmente para a polêmica. De tal modo que sempre haverá um espaço aberto para o contraditório. Assim é que nos aproximamos o mais que possível da verdade objetiva dos fatos. O que por sua vez, ajuda a produzir um debate nem sempre de ataque ou de condenações injustificáveis. Outras, de defesa, fanatismo que também assinalam os exageros de alguns exegetas que subjetivamente de alguma maneira distorcem a verdadeira história do cangaço e do seu vulto maior. Isso nem sempre contribui para o clareamento das compreensões necessárias que buscamos a priori efetivar. Mas este filigrana, portanto, não é apenas inerente a historiografia lampiônica e do cangaço, porém, em essência de todos os acontecimentos, sobretudo do aqueles que concentram no seu bojo a própria historicidade social de um povo, de uma classe, de uma ocorrência em particular. E o fenômeno do cangaço é pródigo neste aspecto intrínseco da sociologia dos sertões nordestino de uma época singular dos anos 20.
E como disse, a história do cangaço passou desde o Cabeleira, Sinhô Pereira, Luiz Padre, Antonio Silvino, Jesuíno Brilhantes e, finalmente a partir da figura extraordinária de Lampião, a assumir a própria veste da polêmica e da contradição numa dimensão quase ilimitada perante o senso crítico e comum das pessoas. Alimentada que foi pelo exagero de ambos os lados(os que viam Lampião como herói) e os que o viam apenas como um bandido. Para a história, no entanto, o que mais interessa é o fato, o fenômeno humano, social, o homem na sua mais legítima integridade de idéias, crenças e ações; isto é, como produto do meio em que vive e atua, bem como da sua influência e conseqüências para o momento presente e futuro. Neste sentido é que reside o grau da importância que urge analisar agora, o fenômentro do cangaço, assim como do seu expoente maior – Lampião; além da sua relação de atuação no cotidiano do Nordeste por quase 20 anos.
A trajetória de Virgulino foi e será para sempre, a própria narrativa das contradições e da polêmica, como sempre tem sido, a história de todos os líderes populares. Como inclusive de uma população inteira fadada a todos os tipos de sofrimentos. A sua opção pelo cangaço, a construção etimológica do seu epíteto(Lampião), o modus operandi pelos grotões, vilas, povoados e cidades nordestinas, sua relação com os pobres, coronéis, políticos, coiteiros e a polícia. A sua relação com o padre Cícero e Floro Bartolomeu, sua patente de Capitão e os Batalhões patrióticos supostamente de combate à coluna Prestes. O misticismo conferido a sua pessoa, o Robin Hood dos sertões(tomando dos ricos para distribuir aos pobres), o Che Guevara dos cafundós dos Judas, dado pelo suposto senso de solidariedade aos injustiçados e oprimidos da região etc. Enfim, a sua personalidade de um homem rude e ao mesmo tempo requintado( que lia a Cruzeiro, tomava uísque importado, usava perfume francês, brilhantina e pistola americano-inglesa) que construiu um marketing pessoal e da sua causa, para assim edificar uma imagem ética em contraposição ao governo e as própria volantes que torturavam inocentes sob a desculpa de que davam apoio aos cangaceiros. Do homem temeroso a Deus, que tinha o dom da invisibilidade quando atocaiado. Dos pressentimentos, das orações do corpo fechado, de membro dos penitentes dos quais recebia proteção. Do respeito aos santos, as crianças, idosos, aos templos e as mulheres. Da sua impiedade aos traidores e ladrões. Do homem de palavra. Por fim, foram tantas as supostas qualidades, crimes e defeitos direcionados ao rei do cangaço que fica cada vez mais difícil aos historiadores contemporâneos descrevê-lo fielmente sem ter que escorrer aqui acolá, numa aparente esparrela ante os deslizes para o romantismo e/ou a parcialidade. Lampião era assim com todas as letras um predestinado. Um homem de exceção...
De modo que neste acaso, a suposta neutralidade que se fala tanto, parece não ajudar muito diante de uma ordem de acontecimento prenhe de nuances informativas distorcidas, floridas, adornadas pela paixão e pelo lirismo exacerbado; que ao um só tempo ajuda a aumentar o mito de uma figura que agora já contorna as fímbrias do folclore como mais uma lenda a percorrer o mundo concreto e abstrato do sertão nordestino com especialidade.
Contudo, me arisco a dizer, que o Cangaço foi sim um meio de vida para muita gente dos sertões: bandoleiros, malfeitores, bandidos, criminosos de toda sorte, inclusive a serviços dos coronéis que no fundo não se diferenciavam dos demais que falsamente condenavam. Gente, no geral sem escrúpulos que praticavam o roubo e depois dividiam com os seus patrões, patrocinadores da pilhagem e, sob o escudo da ética moral, da impunidade, da mentira e do faz-de-conta. Coisas que as elites fingiam não ver até o aparecimento do rei do cangaço. De resto, de algum modo, Lampião e seu bando mexeram com os interesses de todos eles. Por isso Artur Bernardes e depois Getúlio Vargas foram literalmente obrigados a combater com unhas e dentes o cangaço, muito mais do que a Coluna Prestes dos chamados comunistas.
Uma verdadeira fortuna em ouro e dinheiros foi roubada pela volante e os traidores(coiteiros de Virgulino) quando do massacre-chacina do grupo de Lampião e Maria Bonita ocorrido em 28 de julho de 1938 na localidade de Angicos(Poço redondo-AL).
Arisco-me a dizer por fim, que o cangaço foi sim um fenômeno social dos mais emblemáticos já ocorridos nos sertões. Uma válvula de escape através da qual os mais espertos e ousados se utilizavam para fugir de uma situação de extrema penúria, miserabilidade, abandono e crueldade de um estado que até então só parecia existir no papel que os sertanejos sequer ouviu falar.
Lampião, não tivera outra escolha. Adentrou no cangaço por duas razões das mais objetivas: Vingança e sobrevivência. Acabou se dando bem e fez história, tanto que muitos tentaram o destruir não pela propalada sanha de criminalidade que o seu bando supostamente espalhou, mas, sobretudo pela inveja, a cobiça, o desejo de ocupar o seu lugar naquele meio-de-vida relativamente perigoso, mas que compensava pelo alto grau da lucratividade e o próprio sucesso e admiração alcançado junto à boa parte da população e alguns coronéis do latifúndio.
Sem dúvida, uma atividade de risco, para os menos inteligentes e poucos ousados. Um projeto exitoso para Virgulino que no seu todo reunia um conjunto de qualidades extremamente necessárias à execução da prática cangaceirirsta; que sejam: Coragem, inteligência, sentido prático, conhecimento geográfico da caatinga, raciocínio rápido, espírito de liderança, estrategista, desconfiança, esperteza aguda, determinação, firmeza da palavra, política da ameaça e da camaradagem e da recompensa, tática da mobilidade na caatinga, imperdoável com a traição e outros atos contrários a suposta ética do seu bando. Gracioso aos que considerava amigos, leais e valentes.
Tão forte é ainda hoje a polêmica lampiônica ao ponto de há dois anos surgir a versão do fotógrafo mineiro dando conta de que Lampião não morrera na tocaia de Angicos-AL. Segundo ele, o rei do Cangaço(sobrevivera a ela) e vivera até 1993 em MG sob o nome fictício de Antonio Maria da Conceição. As controvérsias vão desde a sua morte até seus inimigos, coiteiros, aliados, parentesco. Coisas bastante comuns tanto a bandidos quanto a heróis...Gente do povo, fazedor de história.
Como se ver nem tanto anjos, nem tanto demônios compuseram a mirabolante história de Lampião e seu bando pelas terras do Nordeste.

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